Em Belo Horizonte, um casal de coreógrafos decidiu dar ao seu filho recém-nascido o nome Piiê, em homenagem a um antigo faraó negro do Egito. O casal Catarina e Danillo Prímola, movidos por sua paixão pela dança e pela cultura africana, escolheram este nome singular após um encontro profundo com a história do faraó durante os preparativos para o Carnaval de 2022.
Danillo, coreógrafo da Escola de Samba Acadêmicos de Venda Nova, explica que o tema escolhido para o desfile daquele ano foi a África, o que os levou a estudar a fundo as ricas tradições e líderes daquele continente. Foi nesse momento que ele se encantou com a história do faraó Piiê, um governante negro cujo legado deixou uma marca indelével na história do Egito Antigo.
“Quando sentamos para estudar sobre o enredo, vi que citava a história do faraó negro, o Piiê. Fizemos a comissão de frente em cima da história dele. Eu, particularmente, fiquei encantado com a história e com o nome e disse que, quando eu tivesse um filho, ia querer chamá-lo de Piiê,” relembra Danillo.
A gestação e o desfile antecipado
Com a chegada da gravidez de Catarina em fevereiro daquele mesmo ano, o casal não hesitou em honrar sua promessa de dar ao filho o nome que tanto os cativou. Piiê, ainda no ventre materno, já fazia parte da celebração do Carnaval, desfilando junto com sua mãe na comissão de frente da escola de samba.
“Piiê, inclusive, desfilou no carnaval na barriga da mãe. Ele escuta o nome desde que descobrimos que Catarina estava grávida,” compartilha Danillo, evidenciando o profundo vínculo que o bebê já tinha com sua identidade antes mesmo de nascer.
O impasse no registro civil
Após o nascimento de Piiê, no entanto, o casal se deparou com um obstáculo inesperado: o cartório recusou-se a registrar o nome escolhido, alegando que a grafia e pronúncia semelhantes ao passo de balé “pliê” poderiam expor a criança ao ridículo, especialmente durante a fase escolar.
Segundo Danillo, o impedimento inicial foi justificado pela grafia incomum do nome, com dois “is” seguidos. Apesar de acreditarem que o nome seria registrado com uma ou duas letras “i”, o cartório exigiu que os pais solicitassem uma autorização judicial, acompanhada de uma justificativa para a escolha da grafia.
“Nunca passou pela minha cabeça que teríamos problema em registrá-lo, porque é um nome próprio que já existe, não é inventado. Eles disseram que teríamos de pedir autorização na Justiça e escrever uma justificativa de por que o nome teria dois ‘is’. Eles deram a entender que o nome seria registrado, seja com um i ou dois. Na hora de pedir a autorização, não entrei em detalhes de por que era importante esse nome, me atentei apenas ao que o cartório pediu,” explica Danillo.
A batalha judicial e a decisão inicial
Diante do impasse, o casal seguiu as orientações do cartório e encaminhou o pedido ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No entanto, a resposta inicial foi uma negativa, baseada na premissa de que o nome poderia “expor a criança ao ridículo”.
Na sua decisão, a Justiça afirmou que “a grafia e pronúncia, em especial pela grande proximidade com um conhecido passo de ballet (pliê), certamente, na atualidade, será apto a expor a criança a ridículo, em especial na fase escolar, seja na infância e adolescência, em que a prática do bullying é cruel, não podendo ser desconsiderado, ainda, a grande dificuldade que o menino enfrentaria no dia a dia, pela dificuldade de compreensão acerca de seu nome.”
A reviravolta no caso e a autorização do registro
Diante dessa decisão desfavorável, Danillo retornou ao cartório para questionar as orientações iniciais, uma vez que a justificativa solicitada era apenas para a grafia do nome, e não para o nome em si. Compartilhando sua situação nas redes sociais, o casal recebeu apoio jurídico de dois defensores públicos, que os auxiliaram a reverter a decisão.
Após ponderações adicionais, a juíza Maria Luíza reconsiderou sua decisão anterior, reconhecendo que, embora não estivesse descartada a possibilidade de constrangimentos futuros devido à grafia e pronúncia incomuns, o respeito à cultura da família deveria prevalecer. Assim, o TJMG autorizou o registro do nome Piiê na forma pretendida pelos pais, inclusive por entender que nomes estrangeiros devem observar a grafia do país de origem.
“Foi uma emoção muito grande para nós. Não teve como conter o choro, a felicidade e o alívio. Espero que as próximas famílias que forem registrar as crianças com nomes africanos e originários não passem por isso, por esse desgaste emocional. Esses nomes têm tanto valor quanto os europeus. Permitir que ele se chame Piiê é permitir que ele tenha contato com uma herança ancestral. O povo preto também teve grandes líderes, reis e rainhas que merecem estar na história do nosso país,” comemorou Danillo após finalmente registrar o bebê.
A legislação brasileira e os nomes incomuns
O caso de Piiê trouxe à tona a questão da regulamentação de nomes no Brasil. A legislação brasileira não proíbe diretamente nomes específicos, mas a Lei de Registros Públicos, de 1973, indica que o oficial de registro civil não deve registrar nomes que possam expor a pessoa ao ridículo ou gerar constrangimentos desnecessários.
No entanto, não há uma lista pré-definida de nomes proibidos, e cabe ao oficial de registro civil analisar cada caso individualmente. Se os responsáveis pela criança não aceitarem a recusa do registrador, podem solicitar que o caso seja revisado pelo juiz corregedor permanente da região, que está vinculado à Corregedoria Geral do estado.
O significado por trás do nome Piiê
Para Catarina e Danillo, a escolha do nome Piiê vai muito além de uma simples preferência estética. Trata-se de uma homenagem à rica herança cultural africana e ao legado de um líder que desafiou as convenções de sua época.
Ao permitir que seu filho carregue esse nome, os pais esperam que ele possa se conectar com suas raízes ancestrais e se inspire na coragem e determinação do faraó Piiê, um governante que deixou sua marca na história, apesar dos desafios enfrentados.
“Permitir que ele se chame Piiê é permitir que ele tenha contato com uma herança ancestral. O povo preto também teve grandes líderes, reis e rainhas que merecem estar na história do nosso país,” ressalta Danillo, evidenciando a importância de valorizar e celebrar a diversidade cultural.
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Graduanda em Pedagogia pela Faculdade Jardins. Redatora do grupo Sena Online.